O Despertar Psíquico: Compartimento de Carga Ceti-78
De Dirk Wehner. Original aqui.
O compartimento de carga Ceti-78 do cruzador Regulus Prime, dos Adeptus Mechanicus, aparecia em verde pálido pelo monitor portátil. Em uma porção escura da espaçonave, o tecnopadre Belafont Kreeler sorriria se possuísse a musculatura necessária – ou mesmo uma boca. Ao invés, exalou uma nuvem de vapor através da tela metálica, satisfeito com a imagem distorcida que vira na pequena tela.
“Estou contigo agora, Kroll”, murmurou. Lá, no compartimento lacrado, algo grande jazia sob lona escura. O Dominus Xu Kroll informara que Ceti-78 fora gravemente contaminada por radiação, e permanecia selada, isolada e sobretudo inativa até que os devidos cânticos de purificação e rituais de reparo fossem realizados.
Mentiras.
Belafont sabia. Desde a Expedição de Recuperação Kroll deixara Marte, ele sabia que Kroll e seus misteriosos asseclas escondiam algo. Suas reuniões fechadas, os sussurros… o grupo de tecnopadres próximos a Kroll cheirava a heresia, e Belafont estava obcecado em descobrir o que planejavam.
Desde o início da expedição, o sacerdote acreditava que havia algo estranho no depósito Ceti-78. Kroll alegara que sua Expedição precisava partir rápido e que não havia tempo para consertar os danos de radição em alguma das inúmeras docas do planeta vermelho. Os navegadores, argumentou, avisaram-lhe sobre o agravamento das tempestades no imatério; a manutenção do local deveria ocorrer ao longo da viagem, antes que a partida fosse perigosa demais.
Que raios de tecnopadre com os parafusos no lugar ousaria irritar o espírito da nave desta forma?, perguntou-se Belafont. Kroll garantiu aos demais que embora partissem prematuramente, mecanoservos escolhidos pessoalmente por ele dedicavam-se incansavelmente aos reparos, mas mesmo assim… só havia uma conclusão lógica, de acordo com os cálculos de Belafont: Kroll escondia algo.
Semanas a fio, tentou acessar o compartimento Ceti-78. Tentou obter os arquivos das câmeras servigilantes, mas não obteve acesso. Enviou sua equipe de operativos Skitarii para investigar, que desapareceu. Interrogou tecnopadres menores e servos que desconfiava estar de alguma forma envolvidos com Xu Kroll e seus asseclas. Nada.
Finalmente conseguira infiltrar um servo-crânio no sistema de ventilação da nave; o pequeno drone ósseo atravessou o labirinto de cabos emaranhados e condutores desencapados, dutos sujos e cansados exaustores até alcançar o intransponível depósito – ou nem tão intransponível, ou o servo não obteria êxito em sua missão. Mais uma prova das mentiras de Kroll. Isso, e todas as armadilhas instaladas no sistema de ventilação, das quais o servo-crânio mal escapara. Agora pairava diante de um basculhante enferrujado no teto, apontando seus sensores óticos para o volume logo abaixo.
E lá estava, exibida no monitor de Belafont, a prova de que Kroll mentiu para todo mundo. O local não estava vazio. Mas o que era exatamente aquilo? Os óticos do tecnopadre rangeram sutilmente, trocando lentes, enquato seus dedos cibernéticos trabalhavam ansiosamente nos controles do monitor portátil. Não importava o quanto ajustava a imagem, continuava sem entender. A tela mostrava apenas o salão vazio, exceto pelo grande volume sob a lona.
Ele sussurrou um palavrão na linguagem binária. Que decepção. Se pudesse chegar mais perto, se houvesse alguma maneira de entrar no Ceti-78 e espiar sob aquela densa cobertura…
Seus dedos tamborilavam o monitor enquanto calculava os prós e os contras do próximo passo. Ele não tinha muitas opções, então deveria arriscar. Com uma série de comandos curtos, ordenou ao servo-crânio que deixasse o esconderijo no teto do depósito. O dispositivo desceu lentamente, aproximando-se do volume no centro do salão. A imagem na tela oscilava conforme o servo se aproximava do alvo; após alguns instantes tediosos, alcançou o piso e pôde circundar o objeto. Belafont não fazia ideia do que era; não havia registros do que seria em nenhum dos bancos de dados de sua mente aprimorada. Demonstrando qualquer coisa próxima ao sentimento de frustração, ordenou ao servo-crânio que chegasse mais perto.
Ali… onde a lona não cobria totalmente. Seria-
Com um ruído de estática, a imagem na tela desapareceu. Preocupado com o ocorrido, o tecnopadre recuou ainda mais nas sombras nas quais se escondia. Escondeu o monitor defeituoso nas dobras do manto vermelho, e enquanto seu metabolismo melhorado reduzia o ritmo do coração mecânico que bombeava-lhe químicos por todo o corpo, ajustou a postura usando os mecatentáculos, e retornou ao corredor principal.
Os pés blindados ressoaram sobre o piso de aço em sua retirada em direção ao machinarium de transporte mais próximo. Tentou manter a naturalidade, caminhando o mais devagar possível enquanto digitava em um bloco de dados. Pelo caminho, evitou outros tecnopadres e mesmo um servitor absorto em seu trabalho nos corredores da nave. Normalmente os autômatos eram programados para sair do caminho de qualquer tecnopadre, mas Belafont temia que Kroll poderia ter equipado seus servos com algum tipo de dispositivo de vigilância. Ele estaria vigilante, preocupado em guardar seus segredos.
Ele teria de se apressar. Mandar o servo-crânio para o interior do compartimento de carga fora um risco aceitável – ele tinha quase certeza de que Kroll tinha tomado precauções para proteger a carga mesmo dentro daquela grande sala. Fora um risco que precisou correr para descobrir mais sobre o segredo de Kroll.
Agora o momento de observar e espionar acabara, era o momento de agir. Uma vez que o dominus encontrasse o servo-crânio de Belafont, facilmente localizaria seu proprietário. Kroll certamente já sabia que alguém o investigava, mas Belafont não pretendia permitir que o outro descobrisse que era ele- não por ora.
A porta decorada com a caveira-e-engrenagem dos Adeptus Mechanicus abriu-se com um chiado, e Belafont adentrou no machinarium, uma intersecção circular apinhada de tripulantes ocupados, patrulhas Skitarii e o falatório binário dos tecnopadres. Dali, o sistema de transporte composto por inúmeros vagões se estendia por toda a nave, garantindo que Belafont chegasse ao destino rapidamente. Abriu caminho entre os sacerdotes menores, a cabeça abaixada. Alguém o reconhecera? Kroll já o descobrira? Com um rápido olhar sobre os ombros, entrou numa das câmaras e ativou-lhe as runas.
“Compartimento de Carga Ceti-78”, soou sua voz metálica.
“Erro”, respondeu-lhe uma voz ainda mais inumana. “O Compartimento de Carga Ceti-78 está restrito por ordem do Dominus Kroll Gamma-Gamma-8″. As portas se fecharam mesmo assim.
“Compartimento de Carga Ceti-78”, repetiu. “Código Kreeler Lambda-Rho-55”
“Rrro”, a voz artificial soou novamente. “Ceti-78 está além dos limites. O grave vazamento de radiação pode danificar o maquinário sagrado e apêndices orgânicos”.
“Erro”.
Ele queria falar novamente, mas pensou duas vezes. A resposta tinha mudado, e esta sutil variação indicaria que não estava lidando com um mero autômato.
“Infelizmente, o código de acesso Kreeler Lambda-Rho-55 não funciona mais”, prosseguiu o Dominus Xu Kroll, por meio dos alto-falantes do elevador. “Assim como o tecnopadre Kreeler”.
Belafont tentou conter os sentimentos mundanos que assaltavam-lhe enquanto golpeava a runa de controle da porta. Um moribundo sinal sonoro acusou uma falha de ativação enquanto o vagão começou a mover-se lentamente.
“Está com medo, Tecnopadre Belafont Kreeler?”, perguntou Kroll. “Um lamentável traço biológico, não é mesmo?”
Belafont olhou em volta conforme a câmara acelerava. Seu olhar deteve-se nas pequenas lentes no painel de controle. Kroll estava observando-o, e controlando o destino final do elevador.
“Aonde você está me levando?”
“Ah, curiosidade”, respondeu Kroll. “Um sentimento útil quando buscamos conhecimento. Mas se não for controlada, pode nos criar problemas”.
“E quanto a mentiras e subterfúgios?”, retrucou Belafont. “Considera-os úteis, Dominus? E quanto às medidas questionáveis que você tem empregado?”
“Você está olhando pelo lado errado, Kreeler. Os segredos que guardo são segredos do Onimessias. Os subterfúgios dos quais me valho são completamente baseados na lógica. Você, por outro lado, interfere em questões além da sua compreensão, simplesmente porque não pôde fazer parte delas. Não há medidas questionáveis, apenas servos do Onimessias prontos para a verdade, e aqueles que não o estão. Uma divisão binária entre aqueles que querem compreender a obra Dele, e aqueles incapazes de fazê-lo”.
“Arrogância é outro aspecto biológico, Dominus“, respondeu lentamente.
Um ruído mecânico, parecido com uma gargalhada, soou pelos alto-falantes.
“Assim como seu ceticismo, Kreeler. Mas já que você criou tantos problemas, devo ao menos saciar um pouco de sua curiosidade”.
Belafont apenas encarou as lentes.
“O que está escondido em Ceti-78 é chamado Dispositivo Varlian. Se você fosse paciente, teria regojizado na glória do Onimessias tão logo eu revelasse o verdadeiro poder da máquina, que agora você sabe o nome. Seja grato por isto. É muito mais do que a maioria dos sacerdotes desta nave têm acesso.
Belafont permaneceu sem reação, mesmo diante das revelações. Aquele nome provocara-lhe uma série de conexões em seus cogitadores, mas ele era incapaz de ordená-los devidamente, assim como ocorrera com as imagens captadas de dentro do compartimento de carga. O transporte continuava em movimento, em velocidade cada vez maior.
Passaram-se alguns momentos, e Xu Kroll falou novamente. “Outro segredo que te contarei, Tecnopadre Belafont Kreeler, sobre o sistema de transporte desta nave. Ela não apenas interliga todos os seus setores – mas também serve como uma rota direta para o lado de fora.
O vagão parou abruptamente. Belafont mal teve tempo para emitir um grito binário, quando um alçapão se abriu no teto, com o uivo ensurdecedor de uma descompressão. O tecnopadre foi lançado na eternidade fria e escura do espaço.
Em seus aposentos, Xu Kroll emitiu um risinho mecânico assim que desativou o monitor que mostrava a câmara de transporte. Não podia negar que se divertira de alguma forma calculando o exato momento de fazer a última revelação a Kreeler. Não era algo digno de um alto membro do Adeptus Mechanicus, mas agora não importava mais. Xu Kroll servia ao Onimessias e todos os seus planos e cálculos eram guiadas pela lógica, fria e calculista. O Dispositivo Varlian seria devidamente testado em tempo, e não podia permitir que céticos como Belafont Kreeler interferissem em sua missão. Ninguém fora do Dente da Engrenagem podia saber sobre isso.
Xu Kroll ligou outro monitor, revelando o compartimento de carga Ceti-78, e o grande volume devidamente oculto pela pesada lona. Ninguém poderia saber até o momento certo…