O Despertar Psíquico: O peso da fraternidade
De Duncan Waugh. Original aqui.
Corian arrancou a manopla do torso do adversário, e as lâminas curvadas da garra relâmpago crepitavam ao vaporizar as vísceras presas aos dedos serrilhados. Observou pesaroso quando o guerreiro até então invencível tombou, restando-lhe apenas o corpo inerte envelopado pela armadura autopropelida. Por mais que tentasse, descobriu-se incapaz de desviar o olhar do sangue que escapava das poucas feridas não cauterizadas no torso de seu camarada, acumulando-se-lhe aos pés.
Ajoelhando, pousou a mão sobre o ombro de seu velho amigo. Os movimentos do Mestre do Capítulo eram lentos e comedidos, a despeito da imensa força física. Observava o guerreiro caído, guardando-lhe as feições do rosto na memória. O tempo passava, e o oficial, por vontade própria ou não, permanecia em solene contemplação, como se pudesse de alguma forma impedir que o espírito do outro se perdesse.
Ao se levantar, encarou os rostos dos outros capitães e tenentes diante da cerimônia. Faziam parte do círculo interno, seus conselheiros, os poucos dignos de testemunharem o que se sucedera. Suas expressões eram graves como a sua – estavam desconfortáveis com o ocorrido, mas nada diriam a respeito. Não era a primeira vez que eram forçados a tomar tal atitude, e Corian não acreditava que seria a última, tamanha a gravidade da corrupção encontrada dentro do Capítulo.
Enquanto se afastava do cadáver, esforçou-se para manter a compostura. Morrer em combate era uma coisa – até algo esperado de um Space Marine – mas aquilo, de joelhos em um porão escuro, era completamente diferente. Voltou a encarar aquele que outrora chamara de irmão, morto por suas próprias mãos, e um estranho mal estar cresceu dentro de si. A sensação crescia toda vez que tornava àquele lugar, e ficava cada vez mais difícil de sobrepujar.
Emoções poderosas se imiscuíam na alma do Mestre do Capítulo, ameaçando vir à tona após o menor dos gatilhos, sentimentos que ele lutava para manter sob controle. Cathal, um dos capitães presentes, deu um passo adiante, como se fosse falar. Ao olhar nos olhos de Corian, manteve-se em silêncio, retornando à formação original.
No meio do grupo, com um irmão morto aos seus pés, Corian sabia que deveria dizer algo. Palavras substanciais, capazes de focar e fortalecer os laços que tinham uns com os outros. Mas naquele momento, era de se esperar, tal intento parecia impossível.
Qual o propósito? Todos ali sabiam que aquelas cerimônias precisavam continuar. Nada que dissesse ou fizesse mudaria aquilo, ou limparia-lhe o sangue de seus irmãos.
Apenas deixou o local com um ar sombrio, perturbado com a futilidade de tudo aquilo. Atravessando o corredor, sua frustração só aumentava. Corian não podia dar-lhes o que precisavam naquele momento – apenas o inimigo poderia fazê-lo.
Tiros explodiam à volta de Cathal e seu esquadrão de Space Marines quando avançaram em direção aos atiradores. Assim que alcançaram o local, limparam o terreno aberto, finalmente situados entre as linhas inimigas. Iniciou-se uma confusão, e o combate corpo a corpo transformou-se em um massacre caótico, no qual o sem-número de inimigos tornava impossível estabelecer coesão entre as tropas imperiais conforme estes abriam caminho violentamente através das hostes de fanáticos.
Pelo canto do olho, Cathal viu um de seus companheiros, Kier, aproximando-se de um cruzamento nas trincheiras, e sendo lançado longe pelo impacto de uma grande barra de ferro, que acabara arrancando-lhe a lâmina. As feições gigantescas de um ogryn veio à luz, balançando seu porrete improvisado desajeitadamente, atingindo aliados e inimigos indiscriminadamente.
“Capitão!”, gritou Kier, surpreso, chamando a atenção de seu oficial.
O fedor da criatura esfarrapada tomava o ambiente, enquanto o gigante golpeava incessantemente o guerreiro desarmado, numa mortal combinação de velocidade e fúria. Cathal tentou abrir caminho no afã de ajudar seu companheiro, mas a cada fanático abatido, outros dois tomavam sua posição. Há muito que sua motoespada parara de funcionar, engasgada com os resíduos ossos e carne, sendo empregada pelo capitão como uma arma concussiva desde então.
Livrando-se dos inúmeros inimigos que atrasavam-no, o oficial aproximou-se rapidamente de Kier, que fora derrubado e agora se apoiava em uma das vigas da trincheira. O ogryn ergueu a barra descomunal de ferrocreto, pronto para aplicar o golpe final.
Temendo o pior, Cathal sacou imediatamente a pistola bolter. “Abaixe-se irmão!”
Mas antes que pudesse apontar a arma, Kier ergueu o braço na direção do atacante e uma grande explosão de luz partiu de sua mão. O vil mutante doi imediatamente envolvido em um pilar de chamas etéreas, gritando desesperadamente tentando dar um fim ao próprio tormento.
Quando Cathal alcançou e ergueu o companheiro, não pôde deixar de notar a expressão desesperada de Kier.
“Isso está dentro de mim”, disse em um tom assustador. “Capitão, a corrupção me alcançou”.
Corian permaneceu em meio a flora do arboretum, vestido com um manto de tecido grosseiro. Olhava a infinitude escura através da grande redoma de vidro, imaginando quantas vidas estavam sendo sacrificadas naquele exato momento, em defesa do gigantesco Imperium.
Permaneceu em silêncio mesmo quando Cathal adentrou o silencioso sanctum e uniu-se a ele na observação do vazio. Minutos passaram-se até que o capitão falasse, a voz baixa e grave, perturbando o silêncio do lugar.
“Kier está cumprindo os ritos de aceitação agora mesmo, e não vai demorar até o momento de sua purificação”.
Corian fez uma careta e seu companheiro se virou para observá-lo, expressando preocupação. “Você não precisa carregar esse peso sozinho, senhor. Tenho falado com os demais e eles concordam. Todos devemos ter nossa cota de-“
“Não!”, reverberou a voz do Mestre do Capítulo, no momento em que ele olhou o outro nos olhos. “Já é ruim o bastante que eu me desonre com tais atos; não permitirei que os outros se contaminem.”
Olhou novamente para o vazio negro que se estendia à sua frente, e prosseguiu, em um tom mais ameno. “É minha responsabilidade, e apenas minha. Não há vantagem alguma em dividir tal pecado”.
“Corian”, insistiu Cathal. “Se você acha que não percebemos o quanto isso te afeta, está enganado. Por que você deveria passar por todo esse tormento sozinho?”
O Mestre do Capítulo sorriu friamente, tornando a atmosfera mais tensa. “Porque eu deveria? Responda-me Cathal: Quando eu paro os batimentos cardíacos de nossos irmãos, quem você acha que sente dor de verdade?”
O capitão não teve tempo para responder; o comandante continuou falando.
“Quantas vidas dos nossos foram interrompidas bruscamente? Quanto deles foram arrastados para um canto escuro desta nave, antes de sangrar até a morte? E por que? Porque manifestaram os dons ofertados pelo próprio Imperador? É por isso que devemos terminar suas existências e expurgar suas glórias dos registros do nosso Capítulo?” Corian agitou os braços, incrédulo. “Por que temos de esconder o que somos?”
“Você sabe o que os Alto Lordes acham sobre manifestações aleatórias de habilidades psíquicas, senhor”, respondeu Cathal. “E você sabe exatamente o que eles diriam”.
Os olhos cinzentos do Mestre do Capítulo se arregalaram com fervor. “E como derramar o sangue dos nossos irmãos ajuda o Imperium? Qual a vantagem nisso?”
Corian apontou para o espaço que se estendia além da espaçonave. “Bem ali, uma galáxia inteira cheia de fracos e oprimidos, de corruptos e decadentes, e enquanto isso, lutamos e morremos. Então temos de esconder deles o que somos, como se fôssemos nós os indignos?”
Virou-se para o companheiro acusadoramente. “Kier era um dos nossos, não acredito que você acha isso justo”.
Cathal deu um passo em direção ao seu oficial, erguendo a voz para falar no mesmo tom do outro. “Você sabe que não! Mas pense por um momento no que você está falando. Se permitirmos que saibam sobre a corruoção, estamos liquidados. Cada um de nossos irmão será executado se formos descobertos, você sabe disso!”
A ira de Corian foi aplacada pelo evidente sofrimento do outro, expresso em seu olhar, e ergueu as mãos para acalmá-lo. Observando a expressão do velho amigo, o Mestre do Capítulo perguntou cautelosamente. “E se houver outro jeito?”
Os demais homens de confiança de Corian já estavam prontos quando o Mestre do Capítulo adentrou as sombras do compartimento de carga. No centro do recinto, com a armadura completa, esta Kier, de cabeça erguida, mantendo o elmo sob o braço.
O líder passou pelos demais com determinação, parando diante do companheiro, escondendo suas verdadeiras emoções sob uma expressão estóica.
O lugar emanava uma atmosfera tão pesada quanto solene, pois muitos daqueles que assistiam a cerimônia já tinham combatido ombro a ombro com Kier, que já salvara a vida de alguns deles, inclusive.
Corian respirou fundo, preparando-se para o que viria. Toda vez que precisou executar um dos seus, sentia parte de si igualmente se despedaçando. Nenhum guerreiro deveria ser escolhido para tirar a vida dos próprios irmãos.
Aqueles homens eram tudo para ele; a irmandade forjada entre guerreiros que lutavam juntos – além do fato de compartilharem a mesma herança genética por serem membros do Adeptus Astartes – fazia parte da essência daqueles homens. Cada um deles arriscaria a própria vida pelo outro sem hesitação, portanto cada parte do capitão resistia ferozmente ao que estava prestes a fazer.
Com um crepitar agudo, o Mestre do Capítulo ativou as fontes de energia que correram ao longo da manopla e das lâminas da garra relâmpago. O salão foi iluminado pelo halo azulado emitido pela arma, que também projetou sombras densas sobre cada um dos indivíduos em formação.
Kier não reagiu ao ruído súbito, pelo contrário; sua postura era sóbria e resoluta, apesar de saber o que aconteceria consigo.
O oficial olhou nos olhos do companheiro; enxergava naquele rosto tomado pelas sombras cada um dos rostos daqueles que fora forçado a matar. Os dedos de Corian convulsionaram involuntariamente, chamando a atenção de Kier, que não entendeu quando aqueles movimentos sutis emitiram uma luz que se espalhou por todo o recinto.
Antes daquilo, Corian tivera pouquíssimas interações com Kier, mas reconhecia no companheiro a mesma força de vontade e o mesmo espírito resoluto presente em todo o Capítulo, o que deu-lhe a absoluta certeza de que a morte daquele homem seria profundamente sentida por todos ali.
Fazia questão de recordar os nomes de todos os Astartes que executara por conta da maldição que recaíra sobre o Capítulo. Memorizara cada um deles para que seus sacrifícios não fossem esquecidos, e a ideia de adicionar um novo nome àquela lista crescente finalmente atingiu-lhe um ponto fraco em seu interior.
Os ruídos da garra cessaram; o Mestre desativara a grande arma, cobrindo o salão com a escuridão novamente. Os rostos de seus conselheiros se ergueram intrigados.
Forçou-se a falar, e sua voz era completamente insegura. “Não…”
O silêncio permaneceu.
“Não mais”, agitou-se o Mestre do Capítulo, a voz acompanhada pelo ranger dos mecanismos da armadura. “Já não sangramos por eles o bastante, para agora precisarmos matar os nossos?”
Alguns dos presentes se entreolharam, preocupados. A voz de Corian ganhou força, assim como sua postura, atraindo para si a atenção de cada um daqueles homens.
“Sei que vários de vocês também se sente assim, no fundo. Esse…” – Corian se esforçou para encontrar as palavras certas. “… despertar. Vai atingir cada um de nós em algum momento, agora eu tenho certeza”.
Houve concordância entre alguns dos presentes quando o Mestre do Capítulo colocou uma mão no ombro de Kier, apaziguador. Então tornou a falar ao grupo como um todo.
“Iremos abaixar a cabeça e morrer como cães pelo simples fato de termos sido criados assim?”, disse, em um tom cada vez mais apaixonado. “Somos guerreiros do Adeptus Astartes! Tudo que sofremos, tudo que suportamos pelo Imperador e seu precioso Imperium, para no final estarmos aqui, com medo do castigo? E pelo quê? Por heresia? Bruxaria?”
Sussurros ecoaram, em assentimento.
Apontou para cada um dos homens. “Sangrarei por você, por você, e por você, irmãos, mas não por isso. Não mais!”, disse apontando para a aquila gravada em seu peitoral.
Gesticulou dramaticamente para incluir todos os presentes. “Conquistamos juntos sub-setores inteiros, destruindo legiões inteiras de homens e xenos. O que temos a temer?”
Os rostos dos Space Marines que o circundavam refletiam sua convicção.
“Somos guerreiros, não gado. Somos predadores, não a caça. É hora de agir como tal”.
Então Cathal deu um passo a frente, com toda a seriedade no rosto. “Então o quer que façamos, senhor?”
Corian segurou-lhe com ambas as mãos, esboçando um tímido sorriso ao responder. “Vamos retomar nosso destino, meu irmão. O seu, o meu, e de cada camarada que morreu protegendo a ideologia corrupta da humanidade”. O Mestre do Capítulo se voltou para os demais, determinado. “Lutaremos por nós mesmos agora”.
“Alguns irão se opôr, irmão”, alertou Cathal, timidamente. “O que faremos?”
O rosto de Corian assumiu uma expressão quase fanática. “Teremos de iluminá-los”.