O Despertar Psíquico: Consequências
De Andy Clark. Original aqui.
“Prendam estes traidores”.
A ordem era tão chocante, tão sem sentido que a Cavaleiro-Centura Dessima não pôde cumpri-la imediatamente. Tentou reconciliar tudo que aprendera, o sentido de tudo aquilo, com a ordem dada pelo Capitão-Escudeiro Tyvar.
Toda a tripulação da ponte da Lux-Imperatus experimentou um momento de pânico enquanto assistiam a projeção holográfica.
O planeta Khassedur era seu destino após meses de provação, cruzando zonas de guerra e atravessando as mais violentas tempestades etéricas. Sua missão era conduzir duas companhias inteiras de greyshields ao seu novo mundo natal, e cuidar para que o Mestre do Capítulo Kaslyn aceitasse o resultado do Milagre de Cawl nas fileiras dos Brazen Drakes.
Orbitavam Khassendur naquele exato momento, enquanto encaravam a imagem tridimensional.
Cansados.
Feridos.
Ao seu redor, impossíveis de ignorar, pilhas de documentos escritos em gótico comum, relatórios estratégicos, alertas, pedidos de ajuda. Contavam uma história de heresia, rebelião, traição e ruína. Sobrepujaram as palavras de Dessima, fizeram pouco de tudo que ela e seus companheiros enfrentaram até ali, destruindo a esperança que pensavam ter encontrado.
A Cavaleiro-Centura absorveu e captou tudo isso em questão de segundos. Tyvar, contudo, continuava à sua frente, diante de toda a tripulação e soldados que guardavam a ponte de comando, diante da Comandante Kachorkyn e das Intocadas que acompanhavam Dessima.
Diante, inclusive, do Capitão Gerion. Os olhos do líder dos greyshields mal perceberam quando Tyvar ergueu a lança guardiã. Os três Brazen Drakes ao seu lado se moveram tão rápido quanto o Escudeiro, mas nem mesmo os Space Marines podem bater a celeridade de um Adeptus Custodes.
Não se sabia ao certo se tentaram sacar as armas, ou erguer as mãos na tentativa de argumentar; em todo caso, paralisaram assim que puseram os olhos no cano do bolter acoplado à lança de Tyvar.
“Capitão-Escudeiro…”, disse Gerion.
“A voz de um homem cuja vida começa a passar diante dos olhos”, pensou Dessima, alcançando lentamente o pomo de sua espada bastarda. Pelo canto do olho percebeu as irmãs fazendo o mesmo.
Não me dirija a palavra, Gerion”, respondeu Tyvar, frio e rígido tal qual um diamante. “Não ousais me olhar, ou a qualquer um destes fiéis servos do Imperador. Fostes conspurcado pela heresia e agora serás detido junto com teus irmãos, até que vosso destino seja decidido”.
Um espasmo de raiva surgiu nas duras feições de Gerion, mas rapidamente escondida sob sua fleuma usual.
“Capitão-Escudeiro, não sabemos o que o Capítulo se tornou. Pode ser um engano, uma artimanha do inimigo. Nesse exato momento nossos irmãos estão lá embaixo, lutando para reaver a honra dos Brazen Drakes. Devemos ajuda-los, não abandona-los! Você nos pede para condenar nossos camaradas, tirando-nos a chance de recorrer. Trair meus irmãos não é do meu feitio”.
“Ao passo que repetir-me não é do meu”, respondeu Tyvar. “Baixa as armas. Ordena a teus irmãos que façam o mesmo. Compreenda a oportunidade que te dou, considerando que teu Capítulo é seguramente Hereticus Diabolus Extremis“.
O veredito surgiu no holograma, sob o maldito selo da Ordo Hereticus. Não havia equívoco. Todos sabiam disto, inclusive Gerion.
Isso é um erro, pensou Dessima, tentando conter toda sua frustração. Tínhamos um propósito. Uma missão. Estamos aqui para dar suporte aos defensores do Imperium, contra seus inimigos. Mas ao invés disso, encontramos corrupção e mentira. Novos falsos campeões, indignos da confiança que o Imperador concedeu-lhes.
A atmosfera estava carregada de tensão. O Capitão Gerion encarava Tyvar, imóvel para não descumprir as instruções. Próximo a Dessima, a tripulação assistia a tudo com as feições de alguém que ainda não compreendera completamente o perigo que corria. Não ousavam mover-se, mas ela podia perceber que muitos deles queria fugir, ou esconder-se sob os consoles metálicos em busca de proteção. Dessima não compartilhava o mesmo sentimento – afinal, as Irmãs Silenciosas eram feitas de material mais rústico – mas ela o compreendia.
“Você não dá oportunidade para nos defender!”, gritou um dos irmãos de Gerion, incapaz de permanecer calado. “Esses pecados não são nossos! Permanecemos leais e nada fizemos de errado, e agora-“
Os disparos soaram por toda a ponte de comando, rompendo o silêncio como um martelo lançado em um painel de vidro. O indignado Brazen Drake foi jogado no chão pelo impacto de munições explosivas. À queima roupa, nem uma armadura autopropelida resistiria aos danos. O sangue cobriu os outros greyshields, a tripulação e os consoles
O caos irrompeu, violento e repentino. Alertas de tiroteio soaram pelos alto-falantes. Luzes escarlates se acenderam, cobrindo o local com tons sanguíneos. A lâmina de Dessima já estava em punho no momento em que o Capitão Gerion sacou a pistola pesada, exibindo o rosto contorcido pela ira.
A tripulação e os soldados reagiram de forma mais lenta, apesar do treinamento e dos anos de experiência. Não podia ser diferente, a luta que ocorria ao seu redor era travada entre anjos e semideuses, ao invés de mortais.
Gritos de pânico e terror se uniram ao barulho dos alarmes. Figuras encapuzadas correram atrás de abrigos ou simplesmente mergulharam no chão, paralisados. Suldados piscavam e erguiam as armas, hesitantes, incertos de como reagiriam em um cenário inconcebível mesmo em pesadelos.
“Sem armas de fogo em minha ponte de comando!”, gritou a Comandante Kachorkyn. Dessima admirou-lhe a coragem, mesmo que fosse fútil naquele momento.
Ordenar que as estrelas parassem de brilhar, ou que o imatério cessasse seus tormentos surtiria o mesmo efeito, pensou a Centura, entrando em combate.
Gerion aponto a pistola e puxou o gatilho, mas ao mesmo tempo em que a arma disparava, Tyvar diminuiu a distância entre ele e desviou o cano da arma. Um dos projéteis se alojou nos controles de astronavegação, e ouro atingiu as costas de um tripulante fugitivo, cortando-o em dois e espalhando sangue visceral.
O contra-ataque de Tyvar foi tão rápido que Dessima não conseguiu acompanhar. Gerion conseguiu desviar milagrosamente, mas não fora rápido o suficiente para evitar perder parte da orelha para um golpe de lança energizada. A pele do rosto foi esfolada pelo campo de força da arma, fazendo o Astartes rosnar.
“Irmãos, fomos traídos!”, gritou pelo microfone interno do vox, lançando-se para longe enquanto sacava a espada gravada com temas dracônicos. “Considerem hostis todos que não são do Capítulo! Tomem o controle da frota!”
Isso é um erro, repetia-se Dessima, abrindo a garganta de um dos Brazen Drakens com a espada; o Space Marine mal tentara reagir antes de ser abatido. Outro Astartes, contudo quebrou o pescoço de uma de suas irmãs com uma bordoada, e lançou o cadáver em sua direção.
Em seguida, sacou o rifle bolter e apontou na direção do Capitão-Escudeiro, que se moveu numa velocidade inesperada para alguém de seu porte físico e pesada blindagem. Defletiu os disparos em sua placa de ombro, amenizando o efeito das explosões e atirou de volta, atingindo seu atacante enquanto avançava rapidamente.
Um tiro abriu uma cratera na greva direita do Space Marine, e a lança de Tyvar desenhou um arco descendente no ar, tendo o elmo inimigo como alvo. Foi detida pelo ruidoso impacto contra a espada de Gerion, dando tempo do irmão ferido recuar, colocando um dos consoles rúnicos entre ele e seu atacante.
“Você dividiu esta frota, traidor!”, gritou Gerion, quando ele e Tyvar travaram suas respectivas lâminas. “Você se voltou contra fiéis servos do Imperador. Matou meus irmãos e me obrigou a agir!”
“Os genes heréticos que trazeis no corpo são a vossa ruina!”, respondeu Tyvar. “Sou um Custodes. Falo com a voz do Imperador. Se fôsseis leais, deporíeis as armas, aceitando o julgamento Dele. Mas te unistes aos teus irmãos ao invés de fazê-lo ao Imperador, como é do feitio dos Adeptus Astartes!”
Gerion torceu a espada, tentando afastar a lança de Tyvar. O Capitão-Escudeiro, todavia, era tão perspicaz quanto habilidoso; permitiu que o gume da arma fosse projetado para o outro lado, e aproveitou a força do movimento para realizar um violento golpe com o cabo da lança. Atingiu o diafragma de Gerion com tanta força que partiu a ceramite e arrancou-lhe o ar dos pulmões.
Gerion recuou, e Dessima aproveitou a oportunidade para flanqueá-lo e envolve-lo em sua aura nulificadora. Ele não era psyker, mas a presença da Irmã Silenciosa era suficiente para roubar-lhe a força e a vontade, e nublar-lhe os pensamentos, quando a clareza seria mais que necessária.
Voltou sua espada contra Gerion, que foi capaz de bloquear o golpe. Em seguida, girou a arma tentando cortar-lhe as pernas, mas o Mestre do Capítulo conseguiu se esquivar. Ele não teve tanta sorte no próximo movimento, e a lâmina da Cavaleiro-Centura atingiu-lhe o coração primário em cheio.
O Capitão traidor estremeceu de dor e choque assim que a espada bastarda de Dessima o atingiu, e o sangue jorrou copiosamente no momento em que a Silenciosa arrancou a lâmina e preparou-se para o golpe final.
Mas antes que pudesse fazê-lo, tiros de bolter explodiram à sua volta. Treinamento e instintos puseram-na em ação, lançando-a sob cobertura de um grande cogitator. As explosões estremeceram a velha máquina, cujo espírito irritado lançou faíscas de indignação.
Tyvar precisou recuar ante os disparos; as cápsulas ricocheteavam em sua armadura de auramita, enquanto posicionava sua lança guardiã e devolvia-lhe os tiros. Os corpos estraçalhados da tripulação e dos soldados pegos no fogo cruzado começavam a se acumular nas proximidades.
Ela fez um rolamento na direção de um navegaltar, e ergueu a cabeça. Pôde ver meia dúzia de Brazen Drakes tomando a porta do recinto, dando suporte ao seu comandante.
Ferido e desfigurado, Gerion e seu irmão remanescente correram na direção de seus companheiros. Alguns bravos soldados disparam escopetas na direção dos Space Marines, e receberam uma rápida e violenta retaliação. Dessima enviou sinais táticos aos três Procuradores sobreviventes, que se ocultaram nas cercanias.
Vamos cercá-los. Mantenham-se em cobertura. Vamos nos aproximar e surpreendê-los.
As irmãs assentiram com a cabeça e puseram-se em ação, rastejando e rolando por entre os painéis, ignorando os mortos e feridos ao longo do trajeto.
Os tiros continuavam a explodir, e Dessima percebeu, estupefata, que o Capitão-Escudeiro Tyvar não buscara abrigo, nem fora abatido pelo fogo inimigo. Pelo contrário, continuou avançando, disparando seu storm bolter, ostentando nada além de um ferimento nos flancos e um corte feio no rosto. E uma tranquilidade inabalável. Só os seus olhos recusavam-se a esconder a fúria que tomava conta de si.
Ela não permitiria que lutasse sozinho contra os traidores. Ergueu-se e avançou, tentando atrair o fogo inimigo. Teve sucesso, e sua agilidade permitiu-lhe escapar de cada um dos disparos. Quase alcançou Gerion e o companheiro ferido, mas foi surpreendida por uma explosão vinda da entrada.
Dessima teve a impressão de ver figuras gigantescas em armadura dourada, empunhando lâminas energizadas, mas podia ver claramente os Space Marines virando-se, gritando e caindo, cabeças e membros decepados por golpes impiedosos. As Procuradoras atacaram em seguida, unindo suas espadas luminosas ao massacre dos Brazen Drakes.
“Pelo Imperador, não!”, gritou Gerion, apontando a pistola pesada, mas antes que pudesse dispará-la, Dessima se lançou contra ele. Girou e cortou, tomando a cabeça do guerreiro ferido. Então saltou em um golpe eviscerante contra o Capitão traidor, que aparou o ataque. Gerion contra-atacou, e a ponta de sua espada passou tão perto do rosto da Centura que pôde sentir o calor do golpe. Ela ajoelhou, defensiva, mas era desnecessário. Tyvar já estava lá, a lança cravada no torso de Gerion, pronta para cortá-lo ao meio.
O sangue explodiu após o golpe, e o traidor mal pôde soluçar antes que a morte roubasse-lhe o brilho dos olhos.
Tyvar pôs um dos pés sobre o cadáver do Capitão e removeu sua arma, desdenhoso. Saudou seus companheiros Custodes e as Intocadas próximas aos Astartes massacrados, e voltou-se para Dessima.
Respirando pesadamente, a Cavaleiro-Centura sacudiu o sangue da arma e a embainhou. Pela rede de vox, pôde ouvir os relatórios sobre conflitos entre greyshields e forças imperiais por toda a frota.
O que começamos aqui? Sinalizou para Tyvar.
“Não começamos nada, Cavaleiro-Centura”, respondeu, voltando o olhar para o holograma que se projetava sobre dezenas de tripulantes mortos. Oficiais e servos sobreviventes deixavam seus esconderijos, ainda em choque, ou rezando fervorosamente para o Imperador. “Não começamos nada, apenas terminamos. Não descansaremos até que todos os Brazen Drakes, recrutas e veteranos, estejam mortos”.
Dessima encarou o Capitão-Escudeiro por algum tempo, e assentiu com a cabeça.
Uma nova missão, sinalizou. Um novo propósito. Um que eles não podem corromper.
“Exatamente, Irmã”, respondeu Tyvar. “É hora deles encararem as consequências”.
Wow